segunda-feira, fevereiro 03, 2020

Desafio dos pobres II

Quero agora contar-vos a minha história, com referência a alguns momentos significativos da minha vida missionária e ao modo como o contacto com os pobres me foi moldando como missionário e foi também dando forma ao modo como eu tento viver o meu ministério ao serviço do Reino de Deus.

Missionário na África

Parti para a África, pela primeira vez em 1989, para fazer os meus estudos de Teologia na Faculdade de Teologia da África de Leste, sediada em Nairobi, capital do Quénia. Aí sofri o primeiro grande choque da minha vida, ao deparar-me com uma situação de pobreza extrema que ainda hoje tenho dificuldade em descrever! Enormes bairros de lata, em que as barracas eram feitas de pedaços de cartão e de madeira, com algumas latas pelo meio; aí passava os meus fins de semana; não havia eletricidade, nem água, nem esgotos, etc. Por outro lado, eu vivia no outro extremo da cidade, onde não faltava nada, exceto eletricidade que nos faltou durante três anos, obrigando-nos a estudar à luz da vela ou de um candeeiro a petróleo! Ter estudado Teologia neste contexto, foi talvez uma das maiores graças que o Senhor me concedeu como missionário.
Logo após a minha ordenação sacerdotal em 1995, fui destinado a Nzara, uma missão no Sudão do Sul que se encontrava em guerra! Foi aí que eu fui confrontado com a necessidade de fazer ajustes na minha vida e desaprender alguns conceitos teológicos para aprender a descobrir Deus na precariedade da vida, na vida e na fé de um povo simples e sofrido, mas com uma esperança inabalável.
Dos anos que passei na África tenho muitas histórias que recordo com carinho e com saudade, porque foram essas histórias de encontros com a gente que marcaram o início de uma vida de ministério ao serviço dos pobres. Conto-vos algumas dessas histórias:

1. A primeira história que vos quero contar é a história da senhora Josephine.
Na tarde do domingo de Páscoa de 1996, cheguei a casa depois de três semanas a visitar algumas aldeias e quase duas centenas de quilómetros de bicicleta e uma esteira no chão a servir de cama. Estava completamente estafado! Tomei banho, comi alguma coisa e estendi-me em cima da cama. Pensei que finalmente iria ter um bom descanso! Estava eu quase a dormir quando alguém bateu à porta do meu quarto: “padre, a senhora Josephine está muito doente e quer vê-lo”. Fiquei aborrecido, mas resisti à grande tentação de adiar para o dia seguinte, embora fosse isso mesmo que me apetecia fazer!
Pegámos nas bicicletas e pusemo-nos a caminho. Ao chegar a casa da senhora Josephine encontrei-a, deitada no chão e envolta num monte de trapos. Quando me viu mexeu-se um pouco e deu-me as boas vindas, agradecendo também pela minha visita. Quis conversar muito… estive com ela mais de uma hora, partilhou a sua situação de dor e sofrimento, disse-me que ia morrer dentro de pouco tempo mas partilhou também aquela certeza de quem está para se encontrar com Deus. Retirei-me com lágrimas nos olhos!
Regressámos a casa; era já noite e tinha feito 29 quilómetros. No dia seguinte recebi a notícia de que a senhora Josephine tinha morrido durante a noite e que tinha morrido em paz.

2. Sempre vivi uma certa tensão no exercício do meu ministério de sacerdote, na medida em que tenho obrigações próprias do sacerdote às quais tenho que responder. E a vida missionária tem-me ensinado a perceber que há prioridades na vida, e que a vida tem a prioridade. E aqui entra a segunda história.
Fiquei absolutamente surpreendido quando um dia estava já preparado na sacristia para celebrar um funeral com missa de corpo presente. Chegou um catequista de uma das aldeias da paróquia a pedir para ir visitar um doente que estava muito mal e queria receber a santa unção e confessar-se.
Eu pensei que naquele dia já não seria possível, pois o funeral iria demorar cerca de duas horas e estávamos quase no final da tarde. O catequista da paróquia, que estava comigo disse-me: “padre, vá lá que eu faço o funeral! Não se preocupe com o funeral; é mais importante agora atender ao doente”. Eu fiquei sem saber o que fazer, mas como tinha sido o catequista chefe da paróquia a dizê-lo, saí, peguei na bicicleta e pus-me a caminho. E hoje penso para comigo, se isto acontecesse em Portugal, como teria sido?

E agora Lilanda! Lilanda é uma paróquia na periferia de Lusaka, cidade capital da Zâmbia. A paróquia tem cerca de 95 mil habitantes e faz parte de um bairro mais amplo, composto por três paróquias, que tem na totalidade cerca de 250 mil habitante. Aí fui pároco durante 8 anos.
Como pároco de uma paróquia enorme como esta e cheia de dasafios, tive a graça de ter como vigário paroquial um outro missionário comboniano de nacionalidade sul-africana. Ambos nos sentimos abençoados por termos a colaborar connosco um grande número de leigos formando várias equipas ao serviço da evangelização e da catequese, assim como na pastoral social, numa sociedade marcada por uma situação de pobreza generalizada.
A paróquia organizou-se de forma que os dois padres que aí trabalhávamos não tínhamos que gastar muito tempo nas burocracias relacionadas com a administração da paróquia. Deste modo, estávamos bastante disponíveis para o trabalho de contacto com a população, não só através das Comunidades Eclesiais de Base (que visitávamos regularmente), como nos vários ministérios relacionados com a pastoral social, justiça e paz, educação, saúde, etc.
As comunidades de base esperavam a nossa presença permanente nas suas reuniões, onde se tratava de tudo: a partilha da Palavra de Deus era o momento em que se traziam para o seio da comunidade as situações de pobreza, doença, situações de injustiça, etc. À luz da Palavra de Deus, partilhada na comunidade, procurava-se dar uma resposta às necessidades das pessoas no seu dia a dia. Tentávamos assim ser sinais da presença de Deus numa situação em que, muitas vezes, Deus parecia estar ausente.
Em Lilanda cresci na fé, aprendi a escutar a Palavra de Deus com a gente simples e pobre. Aprendi a descobrir Deus e a sua presença na precariedade da vida de tanta gente para quem Deus era a única esperança.
Tive momentos difíceis de desânimo e cheguei a escrever uma carta ao meu superior provincial para me enviar para outro lado, até que um dia numa reunião com os líderes do conselho pastoral, tive uma revelação que me deu uma nova força para continuar.
Era a vez de a senhora Faustina Mumba, a tesoureira da paróquia, fazer a oração final. E rezou assim: “hoje quero agradecer ao Senhor porque Ele tem sido muito meu amigo”. Fiquei instantaneamente com um nó na garganta. Na semana anterior a senhora Faustina tinha perdido um filho de 28 anos de idade que tinha morrido de SIDA; tinha deixado quatro filhos todos pequenos. Durante a mesma semana, a sua nora agora viúva, tinha tentado o suicídio três vezes… e ali estava ela a fazer uma experiência do amor de Deus no meio de tantas adversidades, e eu, por coisas insignificantes a querer fugir. Naquela noite, telefonei ao meu superior e pedi-lhe para esquecer a carta que lhe tinha escrito. Ainda hoje ele não sabe a rezão!
Foram experiências como estas que me ensinaram a crescer sempre na sensibilidade para as necessidades dos pobres e a perceber como Deus se revela através da gente simples.
A Eucaristia Dominical era o centro de toda a vida da paróquia: uma autêntica celebração da vida, cheia de alegria, de movimento e de cor. Pergunto-me muitas vezes como é que estes cristãos, a maioria dos quais vive abaixo do limiar da pobreza, eram capazes de celebrar a vida desta forma.
Os cristãos de Lilanda ensinaram-me a olhar para a vida de uma forma diferente; ensinaram-me a ver Deus no encontro com o outro; ensinaram-me a ser sacerdote; ensinaram-me a ser cristão.

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