segunda-feira, julho 11, 2022

Domingo à tarde

 A minha caminhada higiénica ontem, domingo, 10 de julho, foi cheia de peripécias! Caminhava eu há cerca de meia hora, quando ultrapassei dois indivíduos, cada um mais bêbedo que o outro! Ambos conversavam animadamente, expressando uma felicidade do outro munto. Um caminhava ligeiramente mais à frente que o outro, e falava sempre com grande entusiasmo sem olhar para trás. Falavam em crioulo, mas deu para perceber a animação da conversa. O outro, mais carregado nos anos e na substância que tinha ingerido, precisava de toda a largura da rua para poder caminhar. De vez em quando parecia pedir licença ao chão para cair, mas logo a seguir, endireitava-se de novo quase milagrosamente, e com um impulso renovado, colocava-se novamente em marcha! Eram os dois indivíduos mais felizes encima do planeta.

Continuei a minha caminhada, contente por ter visto alguém verdadeiramente feliz. Cerca de dez minutos depois, num lugar meio ermo, onde me preparava para pagar o meu tributo à terra e regar um arbusto que me parecia cheio de sede, vinha um jovem com cerca de 20 anos de idade com cara de menino de papá. Estava visivelmente transtornado sob o efeito de alguma substância forte, que não me parecia ser álcool, e que fazia um esforço titânico para se manter ereto! Decidiu implicar comigo e seguiu-me durante alguns metros! Fiquei assustado e, escusado será dizer, o dito arbusto ficou, pelo menos por algum tempo mais, sem ser regado.

Na mão carregava eu a minha garrafa de alumínio cheia de água. Estava eu a preparar-me para neutralizar o dito energúmeno, utilizando a garrafa como arma de defesa, quando ele decidiu voluntariamente seguir o seu caminho. Não ganhei para o susto!

Como se não bastasse, já na etapa de regresso, cruzei-me com dois adolescentes que se meteram com uma senhora que passeava o seu cãozinho! Ela era idosa, mas não se deixou intimidar pelos ditos cujos atirando-lhes com os nomes mais coloridos que a língua portuguesa tem, e que não é conveniente recordar aqui, mas que podem ser encontrados no Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora! E eram em tal quantidade que poderiam ter causado uma indigestão. Fiquei com a impressão de que se conheciam; talvez vivessem no mesmo bairro, mas a senhora era definitivamente do Norte!

Ao escutar a ladainha, eles deixaram-na e dirigiram-se a mim. Com palavras bem audíveis, mas que eu preferi não escutar; começaram a seguir-me e a dizer entre gargalhadas de gozo, que iam caminhar comigo. Naquele momento pensei que, no mínimo, ia ficar sem o meu telemóvel. Mas logo tive a oportunidade de virar na direção do bairro que estava próximo e imediatamente me aproximei de um grupo de pessoas que conversavam. Foi aí que eu recuperei do incómodo e continuei viagem.

Comecei então a pensar que talvez não tenha sido lá muito boa ideia ter ido caminhar ao domingo à tarde sozinho!

Continuei com a minha caminhada que, nesta altura, já tinha desgastado muito mais calorias do que tinha planeado. Faltava-me ainda cerca de 40 minutos para chegar a casa, e aproveitei ao máximo o resto da caminhada. Quando estava quase a chegar a casa, depois de ter deixado de pensar nos últimos acontecimentos, sai da paragem do autocarro - um espaço vedado à circulação de outros veículos - um carro a toda a velocidade que quase me atropelou! E ainda por cima, um dos passageiros do dito cujo, atirou-me uma data de impropérios que me fizeram doer os ouvidos para o resto do dia. Aparentemente eu devia ter travado para que suas excelências, que vinham a sair de um lugar onde nunca deviam ter entrado, pudessem passar à velocidade de cruzeiro.

Como devem calcular, tive uma tarde de domingo verdadeiramente notável. Às vezes, ter uma vida saudável pode ser verdadeiramente arriscado! Queimar calorias, num domingo à tarde, pode ter efeitos secundários devastadores.

domingo, abril 12, 2020

Ide dizer aos meus irmãos

Vivemos dias de silêncio e de medo! Dias de morte e de incertezas em relação ao futuro. Mas hoje celebramos a ressurreição do Senhor e, por isso, celebramos a esperança. A esperança de que o Senhor está connosco e que, precisamente por isso, não devemos ter medo. A esperança de que, com o Espírito do ressuscitado, seremos capazes de vencer o silêncio e o medo.
Medo e desilusão são os sentimentos que as mulheres, segundo o evangelho de Marcos, sentem quando vêem o sepulcro vazio. Sentem-se paralisadas e, apesar de terem recebido o mandato de ir comunicar a mensagem aos outros discípulos, mantiveram-se em silêncio e “não disseram nada a ninguém” (Mc 16, 7-8). Elas são imagem dos discípulos, que ao longo do caminho que fizeram com Jesus, sempre manifestaram medo, que só Jesus os ajudou a ultrapassar (Mc 4, 41; 6, 50; 9, 6; 9, 32; 10, 32).
Devemos, portanto, pensar na forma como somos chamado a viver a vida nova do Senhor ressuscitado no quotidiano da nossa vida. O mandato de ir para a Galileia, onde Jesus precederá os seus discípulos, é dirigido também a cada um de nós hoje. É na Galileia da nossa vida que devemos viver a vida nova que o senhor ressuscitado quer partilhar connosco e, através de nós, com os que vamos encontrando nos caminhos da nossa vida. E que está bem ter medo, desde que estejamos perto de Jesus, porque com ele venceremos o medo e a tentação de permanecer em silêncio perante a urgência do anúncio.
A Galileia é o lugar onde Jesus iniciou o seu anúncio do reino; aí chamou os discípulos a segui-lo; aí foi sinal da presença do amor de Deus para tanta gente pobre, explorada e marginalizada, seja pelas autoridades políticas seja pelas religiosas; aí Jesus anunciou um reino alternativo questionando e contestando os poderes instalados; um reino de paz, justiça, solidariedade, perdão. Isto é, um reino em que as relações humanas são baseadas no valor que cada tem diante de Deus.
A Galileia são os nossos hospitais, centros de saúde e lares de idosos onde os profissionais de saúde tão generosamente se dedicam a servir o outro e levam em si esta esperança de que o medo e as incertezas não nos podem paralisar. É aí que é mais necessária uma palavra de esperança.
Ao refletirmos sobre a ressurreição de Jesus, somos tentados a ficar a “olhar para o céu” (Atos 1, 11). Isto é, somos tentados a colocar a nossa esperança numa vida para além desta, esquecendo-nos de que é aqui que somos chamados a viver a vida nova do ressuscitado. A esperança na vida eterna é fundamental para o cristão, pois aí seremos acolhidos no eterno abraço amoroso do Pai. Mas essa esperança serve de pouco àqueles que vivem uma vida de sofrimento e de dor neste mundo. E Jesus veio também para que este mundo fosse melhor, porque é neste mundo que a salvação ou condenação de cada um começa.
Na sua homilia de quinta-feira Santa, na Basílica de S. Pedro, o P. Cantalamessa fez-nos um desafio importante: “Deixemos à geração que virá, se necessário, um mundo mais pobre de coisas e dinheiro, mas mais rico de humanidade”. É este o grande desafio que nos é dado viver. Não nos deixemos paralisar pelo medo e pelo desespero! Ele está vivo, sim, e não nos deixa sozinhos.
Então, o convite do Senhor ressuscitado é de continuarmos a fazer caminho com Ele, na Galileia onde nos é dado viver, agora com a força do ressuscitado, porque ele está sempre connosco e nos dá a força para sermos também nós anunciadores da esperança. Nós carregamos connosco a vida nova do ressuscitado, e connosco carregamos também a esperança num mundo melhor que todos somos chamados a construir.
Fazer a experiência do ressuscitado depende da nossa atitude diante do mistério pascal! Com a paixão e morte de Jesus, podemos ficar em silêncio, paralisados pelo medo ou podemos também nós ir “dizer aos [seus] irmãos que partam para a Galileia” (Mt 28, 10); podemos fugir ou regressar ao início do nosso caminho de fé, que é o caminho com Jesus, agora fortalecidos pelo Espírito do ressuscitado. A experiência do ressuscitado dependerá sempre da nossa capacidade de renovar o compromisso de o seguir e, seguindo-o, ser sinal da sua presença viva para aqueles que, como na Galileia daquele tempo, se sentem hoje oprimidos, carenciados, injustiçados.
Assim, Jesus continuará sempre vivo! Vamos também nós para a Galileia continuar o caminho de Jesus e dizer a todos que Ele está vivo. Sim, ressuscitou! Aleluia!

domingo, abril 05, 2020

Viver a Esperança em tempo de pandemia

O Senhor deu-me a graça de falar como um discípulo, para que saiba dizer uma palavra de alento aos que andam abatidos” (Is 50, 4). Estas são as palavras que dão início à primeira leitura da missa de hoje, domingo da Paixão do Senhor. Ao celebrar a Eucaristia hoje, sozinho como o momento impõe, estas palavras ficaram a ecoar nos meus ouvidos e no meu coração; sim, hoje há tanta gente abatida e sem alento para enfrentar este momento difícil que todos vivemos. Mas é um momento de crescermos todos na esperança.
Não é aquela esperança de que tudo vai ficar bem! Não. Não vai ficar tudo bem. Vai morrer muita gente, vai haver muitas dificuldades a todos os níveis da sociedade, já há e vai haver ainda mais fome e muita gente sem as suas necessidades básicas satisfeitas. Já há e vai haver muito sofrimento humano. Mesmo aqui à nossa porta. Mas é aquela esperança que, embora confinados no pequeno espaço das nossas casas, não nos paralisa, mas torna-nos mais atentos às necessidades dos mais vulneráveis, enfim, nos torna mais solidários.
Na celebração do Domingo da Paixão do Senhor, tradicionalmente chamado Domingo de Ramos, há dois elementos importantes que ressaltam da liturgia e que refletem também o que aconteceu quando Jesus entrou em Jerusalém. Há uma passagem da euforia ao desalento, da exaltação de Jesus como o líder esperado ao abandono desse mesmo Jesus por parte dos seus discípulos. Há a passagem de uma manifestação de união motivada por uma fé entusiasta à mudança de atitude e dispersão daqueles que eram os mais fiéis amigos de Jesus.
A pandemia que nos aflige, veio fazer-nos refletir sobre a vida, a sociedade, e a forma como nós vivemos as nossas relações. Ela não poupa ninguém. Ninguém mesmo. A euforia do consumo e do bem estar que a nossa sociedade nos impunha (parecia que estávamos todos no topo do mundo!), deu lugar ao desalento, à falta de esperança, a uma incerteza medonha. Mas como em todas as crises, são os mais vulneráveis da sociedade que acabam por experimentar as piores consequências.
Alguém tem de ter uma palavra de alento e de esperança! Não a esperança daqueles que sentem a nostalgia de liturgias maravilhosas, com multidões a caminhar pelas ruas de palmas nas mãos, que infelizmente muitas vezes só fazem inchar o ego daqueles que as realizam. É a esperança que vem da fé naquele Jesus que mandou interromper a liturgia porque as relações entre vizinhos são mais importantes (Mt 5, 23-24). A esperança que vem daquele Jesus que nos ensina que, se for necessário, devemos interromper o nosso caminho para a igreja (para a liturgia!) de forma a podermos estender a mão a quem se encontra maltratado à beira do caminho (Lc 10, 29-37). É a esperança que vem da oração silenciosa do nosso confinamento que chega aos ouvidos do Pai (Mt 6, 6).
Neste tempo de dor e de sofrimento, de incerteza e até de desespero para muita gente, há quem pense o contrário. Quando oiço um colega padre dizer que o facto de não se celebrar a Eucaristia é sinal de pouca fé, porque Deus “pode” proteger-nos do corona vírus, mesmo se estivermos todos em contacto físico uns com os outros dentro de uma igreja, fico triste. E apetece-me dizer: não, Deus não pode proteger-nos! Porque Deus deu-nos a nós esse poder. O poder de Deus tem de ser levado à prática no quotidiano daqueles que acreditam em Jesus e de todos aqueles que não tendo fé, acreditam no ser humano e no valor da solidariedade. E o distanciamento social faz parte do exercício desse poder. Por isso, quando cada um está a fazer alguma coisa para melhorar a situação, impedir o alastramento rápido da pandemia, e minimizar o sofrimento humano de tantas irmãs e irmãos nossos, aí está Deus a exercer o seu poder. E para muitos, a única coisa que podem e devem fazer é ficar em casa. Deus poderia ter livrado Jesus da cruz. Mas não o fez, porque em liberdade, os poderes instalados decidiram o contrário.
Quanto à Eucaristia, essa é celebrada hoje pelos profissionais de saúde que servem sem reservas o Cristo presente nos doentes que tem de atender e que para isso renunciam às suas próprias famílias para estarem onde devem estar, na linha da frente, de forma completamente altruísta! A Eucaristia é celebrada hoje nos milhares de voluntários e voluntárias que servem Cristo na pessoa dos sem-abrigo e das famílias carenciadas, cuja única esperança está na chegada de um cireneu que lhes ajude a sentir que não estão sozinhos. A Eucaristia está a ser celebrada naquelas famílias que deixaram de trabalhar e não têm nada para dar de comer aos seus filhos. A Eucaristia é celebrada na pessoa daqueles que generosamente saem dos seu próprio confinamento para levar algo que dê esperança a essas irmãs e irmãos. A Eucaristia é celebrada na pessoa daquele velhinho e velhinha que, sozinhos em suas casas não têm o carinho de ninguém, nem algo para comer nem dinheiro para comprar os medicamentos de que precisam. A Eucaristia é celebrada por tantos filhos e filhas impedidos de ver os seus pais velhinhos e doentes nos lares e em suas próprias casas, ou nos velhinhos que tanto queriam dar um beijo ou um abraço aos seus filhos e netos e não o podem fazer. A Eucaristia está a ser celebrada hoje na pessoa daquelas irmãs e irmãos nossos que morrem sozinhos sem o carinho dum ente querido e sem a possibilidade de ter um funeral digno.
São todos estes que experimentam no quotidianos das suas vidas o caminho de Jesus em direção à cruz. É a entrega desinteressada de tanta gente que deve alimentar a nossa esperança. Neste momento é esta a verdadeira Eucaristia.
Esta semana Santa, não vai terminar na Sexta-feira Santa; Ela termina no Domingo da Ressurreição. Vamos sair mais fortes porque mais solidários! Vamos contribuir para construir um mundo melhor, uma sociedade mais justa e mais fraterna, olhando ao essencial de vida, que é fazer com que as nossas relações sejam mais justas, mais fraternas, mais solidárias e mais humanas. Vamos ser sinais, uns para os outros, da presença de Deus. Assim, todos sentiremos que não estamos sozinhos porque Ele, através de cada um de nós, está presente.

segunda-feira, fevereiro 03, 2020

Desafio dos Pobres III

As paróquias de Camarate e Apelação, no concelho de Loures, estão ao cuidado dos Missionários Combonianos que têm aí uma comunidade de quatro missionários. Dois de nós, eu e o Ir. José Manuel, estamos agora a dar início a um projeto da iniciativa dos nossos superiores provinciais da Europa. O projeto é na área da pastoral social, trabalho com migrantes, comunidades ciganas, justiça e paz.
Ultimamente temos falado muito de periferias e corremos o risco de esvaziar de sentido esta expressão! O objetivo é trazer as periferias para o centro; não para o centro do sistema opressor e egoísta que mata e mantém pessoas numa situação contínua de empobrecimento. Mas é trazer os pobres para o centro das nossas atenções, das atenções das igreja e das autoridades, que têm a responsabilidade de cuidar deles e de lhes proporcionar uma vida digna.
A igreja portuguesa, da qual eu faço parte, deve ter a coragem e a ousadia de levar à prática esta etapa nova da evangelização tão desejada pelo Papa Francisco, e reinventar a linguagem do evangelho de Jesus, isto é, fazer com que o evangelho continue a ser Boa Notícia. O grande desafio que eu sinto como missionário, é o de perceber que Camarate e Apelação são o lugar da missão que o Senhor quer para mim, neste momento da minha vida.
Levar Deus às periferias é a metodologia de Jesus. Ela deve ser também a minha. Como sacerdote missionário sou chamado a ser sinal da presença de Deus, lá onde os pobres vivem e onde Deus parece muitas vezes estar ausente.
Gostaria que o meu ministério sacerdotal fosse o contributo, embora pobre e talvez insignificante, para levar Jesus Cristo às periferias, sejam elas geográficas ou existenciais. Para isso, devo estar presente na vida dos pobres e os pobres devem tornar-se cada vez mais o centro do meu ministério que deve ser sempre um ministério de presença e inserção.

Jesus não chamou ninguém para ser sacerdote, mas sim discípulo. Talvez alguns de nós fiquemos escandalizados com estas palavras. Ele não foi condenado por ter proposto uma liturgia diferente, mas porque tomou partido pelos pobres e convidou um grupo de amigos para o seguirem, e com isso desafiou e provocou os poderosos do seu tempo, incluindo os sacerdotes de Jerusalém. Aliás, Jesus teve alguns problemas com os sacerdotes de Jerusalém, alguns dos quais contribuíram para a sua condenação à cruz. Há uma crítica severa que Jesus faz aos sacerdotes na parábola do bom Samaritano: a liturgia (dever sacerdotal) deve ser subordinada ao serviço ao outro, isto é, fazer-se próximo é mais importante do que a liturgia. E eu devo estar sempre muito atento para não ser objeto da mesma crítica. A liturgia, por mais importante que seja, ou me leva a ser “próximo”, ou então é desprovida de significado.
A questão que eu me coloco muitas vezes é esta: como é que eu estabeleço o equilíbrio entre aquilo que é a pastoral tradicional ou de manutenção, também ela necessária, e os grandes desafios que me são diariamente colocados pelos enormes problemas sociais que afetam a nossa gente e que a fazem sentir-se abandonada por por todos, incluindo Deus?
Partilho convosco estas histórias banais da minha vida e do meu ministério porque elas marcaram profundamente a minha vida de sacerdote missionário. Tive a graça de ter podido partilhar da vida de tanta gente maravilhosa que, através da partilha das suas vidas comigo me ensinaram a ser sacerdote missionário e a descobrir Deus nos acontecimentos simples da vida daqueles que o Senhor foi colocando no meu caminho.

Desafio dos pobres II

Quero agora contar-vos a minha história, com referência a alguns momentos significativos da minha vida missionária e ao modo como o contacto com os pobres me foi moldando como missionário e foi também dando forma ao modo como eu tento viver o meu ministério ao serviço do Reino de Deus.

Missionário na África

Parti para a África, pela primeira vez em 1989, para fazer os meus estudos de Teologia na Faculdade de Teologia da África de Leste, sediada em Nairobi, capital do Quénia. Aí sofri o primeiro grande choque da minha vida, ao deparar-me com uma situação de pobreza extrema que ainda hoje tenho dificuldade em descrever! Enormes bairros de lata, em que as barracas eram feitas de pedaços de cartão e de madeira, com algumas latas pelo meio; aí passava os meus fins de semana; não havia eletricidade, nem água, nem esgotos, etc. Por outro lado, eu vivia no outro extremo da cidade, onde não faltava nada, exceto eletricidade que nos faltou durante três anos, obrigando-nos a estudar à luz da vela ou de um candeeiro a petróleo! Ter estudado Teologia neste contexto, foi talvez uma das maiores graças que o Senhor me concedeu como missionário.
Logo após a minha ordenação sacerdotal em 1995, fui destinado a Nzara, uma missão no Sudão do Sul que se encontrava em guerra! Foi aí que eu fui confrontado com a necessidade de fazer ajustes na minha vida e desaprender alguns conceitos teológicos para aprender a descobrir Deus na precariedade da vida, na vida e na fé de um povo simples e sofrido, mas com uma esperança inabalável.
Dos anos que passei na África tenho muitas histórias que recordo com carinho e com saudade, porque foram essas histórias de encontros com a gente que marcaram o início de uma vida de ministério ao serviço dos pobres. Conto-vos algumas dessas histórias:

1. A primeira história que vos quero contar é a história da senhora Josephine.
Na tarde do domingo de Páscoa de 1996, cheguei a casa depois de três semanas a visitar algumas aldeias e quase duas centenas de quilómetros de bicicleta e uma esteira no chão a servir de cama. Estava completamente estafado! Tomei banho, comi alguma coisa e estendi-me em cima da cama. Pensei que finalmente iria ter um bom descanso! Estava eu quase a dormir quando alguém bateu à porta do meu quarto: “padre, a senhora Josephine está muito doente e quer vê-lo”. Fiquei aborrecido, mas resisti à grande tentação de adiar para o dia seguinte, embora fosse isso mesmo que me apetecia fazer!
Pegámos nas bicicletas e pusemo-nos a caminho. Ao chegar a casa da senhora Josephine encontrei-a, deitada no chão e envolta num monte de trapos. Quando me viu mexeu-se um pouco e deu-me as boas vindas, agradecendo também pela minha visita. Quis conversar muito… estive com ela mais de uma hora, partilhou a sua situação de dor e sofrimento, disse-me que ia morrer dentro de pouco tempo mas partilhou também aquela certeza de quem está para se encontrar com Deus. Retirei-me com lágrimas nos olhos!
Regressámos a casa; era já noite e tinha feito 29 quilómetros. No dia seguinte recebi a notícia de que a senhora Josephine tinha morrido durante a noite e que tinha morrido em paz.

2. Sempre vivi uma certa tensão no exercício do meu ministério de sacerdote, na medida em que tenho obrigações próprias do sacerdote às quais tenho que responder. E a vida missionária tem-me ensinado a perceber que há prioridades na vida, e que a vida tem a prioridade. E aqui entra a segunda história.
Fiquei absolutamente surpreendido quando um dia estava já preparado na sacristia para celebrar um funeral com missa de corpo presente. Chegou um catequista de uma das aldeias da paróquia a pedir para ir visitar um doente que estava muito mal e queria receber a santa unção e confessar-se.
Eu pensei que naquele dia já não seria possível, pois o funeral iria demorar cerca de duas horas e estávamos quase no final da tarde. O catequista da paróquia, que estava comigo disse-me: “padre, vá lá que eu faço o funeral! Não se preocupe com o funeral; é mais importante agora atender ao doente”. Eu fiquei sem saber o que fazer, mas como tinha sido o catequista chefe da paróquia a dizê-lo, saí, peguei na bicicleta e pus-me a caminho. E hoje penso para comigo, se isto acontecesse em Portugal, como teria sido?

E agora Lilanda! Lilanda é uma paróquia na periferia de Lusaka, cidade capital da Zâmbia. A paróquia tem cerca de 95 mil habitantes e faz parte de um bairro mais amplo, composto por três paróquias, que tem na totalidade cerca de 250 mil habitante. Aí fui pároco durante 8 anos.
Como pároco de uma paróquia enorme como esta e cheia de dasafios, tive a graça de ter como vigário paroquial um outro missionário comboniano de nacionalidade sul-africana. Ambos nos sentimos abençoados por termos a colaborar connosco um grande número de leigos formando várias equipas ao serviço da evangelização e da catequese, assim como na pastoral social, numa sociedade marcada por uma situação de pobreza generalizada.
A paróquia organizou-se de forma que os dois padres que aí trabalhávamos não tínhamos que gastar muito tempo nas burocracias relacionadas com a administração da paróquia. Deste modo, estávamos bastante disponíveis para o trabalho de contacto com a população, não só através das Comunidades Eclesiais de Base (que visitávamos regularmente), como nos vários ministérios relacionados com a pastoral social, justiça e paz, educação, saúde, etc.
As comunidades de base esperavam a nossa presença permanente nas suas reuniões, onde se tratava de tudo: a partilha da Palavra de Deus era o momento em que se traziam para o seio da comunidade as situações de pobreza, doença, situações de injustiça, etc. À luz da Palavra de Deus, partilhada na comunidade, procurava-se dar uma resposta às necessidades das pessoas no seu dia a dia. Tentávamos assim ser sinais da presença de Deus numa situação em que, muitas vezes, Deus parecia estar ausente.
Em Lilanda cresci na fé, aprendi a escutar a Palavra de Deus com a gente simples e pobre. Aprendi a descobrir Deus e a sua presença na precariedade da vida de tanta gente para quem Deus era a única esperança.
Tive momentos difíceis de desânimo e cheguei a escrever uma carta ao meu superior provincial para me enviar para outro lado, até que um dia numa reunião com os líderes do conselho pastoral, tive uma revelação que me deu uma nova força para continuar.
Era a vez de a senhora Faustina Mumba, a tesoureira da paróquia, fazer a oração final. E rezou assim: “hoje quero agradecer ao Senhor porque Ele tem sido muito meu amigo”. Fiquei instantaneamente com um nó na garganta. Na semana anterior a senhora Faustina tinha perdido um filho de 28 anos de idade que tinha morrido de SIDA; tinha deixado quatro filhos todos pequenos. Durante a mesma semana, a sua nora agora viúva, tinha tentado o suicídio três vezes… e ali estava ela a fazer uma experiência do amor de Deus no meio de tantas adversidades, e eu, por coisas insignificantes a querer fugir. Naquela noite, telefonei ao meu superior e pedi-lhe para esquecer a carta que lhe tinha escrito. Ainda hoje ele não sabe a rezão!
Foram experiências como estas que me ensinaram a crescer sempre na sensibilidade para as necessidades dos pobres e a perceber como Deus se revela através da gente simples.
A Eucaristia Dominical era o centro de toda a vida da paróquia: uma autêntica celebração da vida, cheia de alegria, de movimento e de cor. Pergunto-me muitas vezes como é que estes cristãos, a maioria dos quais vive abaixo do limiar da pobreza, eram capazes de celebrar a vida desta forma.
Os cristãos de Lilanda ensinaram-me a olhar para a vida de uma forma diferente; ensinaram-me a ver Deus no encontro com o outro; ensinaram-me a ser sacerdote; ensinaram-me a ser cristão.

Social Icons

.