Quero
agora contar-vos
a minha história, com referência a alguns momentos significativos
da minha vida missionária e ao modo como o contacto com os pobres me
foi moldando como missionário e foi
também dando forma ao modo como eu tento viver o meu ministério ao
serviço do Reino de Deus.
Missionário
na África
Parti
para a África, pela primeira vez em 1989, para fazer os meus estudos
de Teologia na Faculdade de Teologia da África de Leste, sediada em
Nairobi, capital do Quénia. Aí sofri o primeiro grande choque da
minha vida, ao deparar-me com uma situação de pobreza extrema que
ainda hoje tenho dificuldade em descrever! Enormes bairros de lata,
em que as barracas eram feitas de pedaços de cartão e de madeira,
com algumas latas pelo meio; aí passava os meus fins de semana; não
havia eletricidade, nem água, nem esgotos, etc. Por outro lado, eu
vivia no outro extremo da cidade, onde não faltava nada, exceto
eletricidade que nos faltou durante três anos, obrigando-nos a
estudar à luz da vela ou de um candeeiro a petróleo! Ter estudado
Teologia neste contexto, foi talvez uma das maiores graças que o
Senhor me concedeu como missionário.
Logo
após a minha ordenação sacerdotal em 1995, fui destinado a Nzara,
uma missão no Sudão do Sul que se encontrava em guerra! Foi aí que
eu fui confrontado com a necessidade de fazer ajustes na minha vida e
desaprender alguns conceitos teológicos para aprender a descobrir
Deus na precariedade da vida, na vida e na fé de um povo simples e
sofrido, mas com uma esperança inabalável.
Dos anos que passei na África tenho muitas histórias que recordo com carinho e com
saudade, porque foram essas histórias de encontros com a gente que
marcaram o início de uma vida de ministério ao serviço dos pobres.
Conto-vos algumas dessas histórias:
1.
A primeira história que vos quero contar é a história da senhora
Josephine.
Na
tarde do domingo de Páscoa de 1996, cheguei a casa depois de três
semanas a visitar algumas aldeias e quase duas centenas de
quilómetros de bicicleta e uma esteira no chão a servir de cama.
Estava completamente estafado! Tomei banho, comi alguma coisa e
estendi-me em cima da cama. Pensei que finalmente iria ter um bom
descanso! Estava eu quase a dormir quando alguém bateu à porta do
meu quarto: “padre,
a senhora Josephine está muito doente e quer vê-lo”.
Fiquei aborrecido, mas resisti à grande tentação de adiar para o
dia seguinte, embora fosse isso mesmo que me apetecia fazer!
Pegámos
nas bicicletas e pusemo-nos a caminho. Ao chegar a casa da senhora
Josephine encontrei-a, deitada no chão e envolta num monte de
trapos. Quando me viu mexeu-se um pouco e deu-me as boas vindas,
agradecendo também pela minha visita. Quis conversar muito… estive
com ela mais de uma hora, partilhou a sua situação de dor e
sofrimento, disse-me que ia morrer dentro de pouco tempo mas
partilhou também aquela certeza de quem está para se encontrar com
Deus. Retirei-me com lágrimas nos olhos!
Regressámos
a casa; era já noite e tinha feito 29 quilómetros. No dia seguinte
recebi a notícia de que a senhora Josephine tinha morrido durante a
noite e que tinha morrido em paz.
2.
Sempre vivi uma certa tensão no exercício do meu ministério de
sacerdote, na medida em que tenho obrigações próprias do sacerdote
às quais tenho que responder. E a vida missionária tem-me ensinado
a perceber que há prioridades na vida, e que a vida tem a
prioridade. E aqui entra a segunda história.
Fiquei
absolutamente surpreendido quando um dia estava já preparado na
sacristia para celebrar um funeral com missa de corpo presente.
Chegou um catequista de uma das aldeias da paróquia a pedir para ir
visitar um doente que estava muito mal e queria receber a santa unção
e confessar-se.
Eu
pensei que naquele dia já não seria possível, pois o funeral iria
demorar cerca de duas horas e estávamos quase no final da tarde. O
catequista da paróquia, que estava comigo disse-me: “padre,
vá lá que eu faço o funeral! Não se preocupe com o funeral; é
mais importante agora atender ao doente”.
Eu fiquei sem saber o que fazer, mas como tinha sido o catequista
chefe da paróquia a dizê-lo, saí, peguei na bicicleta e pus-me a
caminho. E hoje penso para comigo, se isto acontecesse em Portugal,
como teria sido?
E
agora Lilanda! Lilanda é uma paróquia na periferia de Lusaka,
cidade capital da Zâmbia. A paróquia tem cerca de 95 mil habitantes
e faz parte de um bairro mais amplo, composto por três paróquias,
que tem na totalidade cerca de 250 mil habitante. Aí fui pároco
durante 8 anos.
Como
pároco de uma paróquia enorme como esta e cheia de dasafios, tive a
graça de ter como vigário paroquial um outro missionário
comboniano de nacionalidade sul-africana. Ambos nos sentimos
abençoados por termos a colaborar connosco um grande número de
leigos formando várias equipas ao serviço da evangelização e da
catequese, assim como na pastoral social, numa sociedade marcada por
uma situação de pobreza generalizada.
A
paróquia organizou-se de forma que os dois padres que aí
trabalhávamos não tínhamos que gastar muito tempo nas burocracias
relacionadas com a administração da paróquia. Deste modo,
estávamos bastante disponíveis para o trabalho de contacto com a
população, não só através das Comunidades Eclesiais de Base (que
visitávamos regularmente), como nos vários ministérios
relacionados com a pastoral social, justiça e paz, educação,
saúde, etc.
As
comunidades de base esperavam a nossa presença permanente nas suas
reuniões, onde se tratava de tudo: a partilha da Palavra de Deus era
o momento em que se traziam para o
seio da comunidade as situações de
pobreza, doença, situações de injustiça, etc. À luz da Palavra
de Deus, partilhada na comunidade, procurava-se dar uma resposta às
necessidades das pessoas no seu dia a dia. Tentávamos assim ser
sinais da presença de Deus numa situação em que, muitas vezes,
Deus parecia estar ausente.
Em
Lilanda cresci na fé, aprendi a escutar a Palavra de Deus com a
gente simples e pobre. Aprendi a descobrir Deus e a sua presença na
precariedade da vida de tanta gente para quem Deus era a única
esperança.
Tive
momentos difíceis de desânimo e cheguei a escrever uma carta ao meu
superior provincial para me enviar para outro lado, até que um dia
numa reunião com os líderes do conselho pastoral, tive uma
revelação que me deu uma nova força para continuar.
Era
a vez de a senhora Faustina Mumba, a tesoureira da paróquia, fazer a
oração final. E rezou assim: “hoje quero agradecer ao Senhor
porque Ele tem sido muito meu amigo”. Fiquei instantaneamente com
um nó na garganta. Na semana anterior a senhora Faustina tinha
perdido um filho de 28 anos de idade que tinha morrido de SIDA; tinha
deixado quatro filhos todos pequenos. Durante a mesma semana, a sua
nora agora viúva, tinha tentado o suicídio três vezes… e ali
estava ela a fazer uma experiência do amor de Deus no meio de tantas
adversidades, e eu, por coisas insignificantes a querer fugir.
Naquela noite, telefonei ao meu superior e pedi-lhe para esquecer a
carta que lhe tinha escrito. Ainda hoje ele não sabe a rezão!
Foram
experiências como estas que me ensinaram a crescer sempre na
sensibilidade para as necessidades dos pobres e a perceber como Deus
se revela através da gente simples.
A
Eucaristia Dominical era o centro de toda a vida da paróquia: uma
autêntica celebração da vida, cheia de alegria, de movimento e de
cor. Pergunto-me muitas vezes como é que estes cristãos, a maioria
dos quais vive abaixo do limiar da pobreza, eram capazes de celebrar
a vida desta forma.
Os
cristãos de Lilanda ensinaram-me a olhar para a vida de uma forma
diferente; ensinaram-me a ver Deus no encontro com o outro;
ensinaram-me a ser sacerdote; ensinaram-me a ser cristão.