domingo, abril 05, 2020

Viver a Esperança em tempo de pandemia

O Senhor deu-me a graça de falar como um discípulo, para que saiba dizer uma palavra de alento aos que andam abatidos” (Is 50, 4). Estas são as palavras que dão início à primeira leitura da missa de hoje, domingo da Paixão do Senhor. Ao celebrar a Eucaristia hoje, sozinho como o momento impõe, estas palavras ficaram a ecoar nos meus ouvidos e no meu coração; sim, hoje há tanta gente abatida e sem alento para enfrentar este momento difícil que todos vivemos. Mas é um momento de crescermos todos na esperança.
Não é aquela esperança de que tudo vai ficar bem! Não. Não vai ficar tudo bem. Vai morrer muita gente, vai haver muitas dificuldades a todos os níveis da sociedade, já há e vai haver ainda mais fome e muita gente sem as suas necessidades básicas satisfeitas. Já há e vai haver muito sofrimento humano. Mesmo aqui à nossa porta. Mas é aquela esperança que, embora confinados no pequeno espaço das nossas casas, não nos paralisa, mas torna-nos mais atentos às necessidades dos mais vulneráveis, enfim, nos torna mais solidários.
Na celebração do Domingo da Paixão do Senhor, tradicionalmente chamado Domingo de Ramos, há dois elementos importantes que ressaltam da liturgia e que refletem também o que aconteceu quando Jesus entrou em Jerusalém. Há uma passagem da euforia ao desalento, da exaltação de Jesus como o líder esperado ao abandono desse mesmo Jesus por parte dos seus discípulos. Há a passagem de uma manifestação de união motivada por uma fé entusiasta à mudança de atitude e dispersão daqueles que eram os mais fiéis amigos de Jesus.
A pandemia que nos aflige, veio fazer-nos refletir sobre a vida, a sociedade, e a forma como nós vivemos as nossas relações. Ela não poupa ninguém. Ninguém mesmo. A euforia do consumo e do bem estar que a nossa sociedade nos impunha (parecia que estávamos todos no topo do mundo!), deu lugar ao desalento, à falta de esperança, a uma incerteza medonha. Mas como em todas as crises, são os mais vulneráveis da sociedade que acabam por experimentar as piores consequências.
Alguém tem de ter uma palavra de alento e de esperança! Não a esperança daqueles que sentem a nostalgia de liturgias maravilhosas, com multidões a caminhar pelas ruas de palmas nas mãos, que infelizmente muitas vezes só fazem inchar o ego daqueles que as realizam. É a esperança que vem da fé naquele Jesus que mandou interromper a liturgia porque as relações entre vizinhos são mais importantes (Mt 5, 23-24). A esperança que vem daquele Jesus que nos ensina que, se for necessário, devemos interromper o nosso caminho para a igreja (para a liturgia!) de forma a podermos estender a mão a quem se encontra maltratado à beira do caminho (Lc 10, 29-37). É a esperança que vem da oração silenciosa do nosso confinamento que chega aos ouvidos do Pai (Mt 6, 6).
Neste tempo de dor e de sofrimento, de incerteza e até de desespero para muita gente, há quem pense o contrário. Quando oiço um colega padre dizer que o facto de não se celebrar a Eucaristia é sinal de pouca fé, porque Deus “pode” proteger-nos do corona vírus, mesmo se estivermos todos em contacto físico uns com os outros dentro de uma igreja, fico triste. E apetece-me dizer: não, Deus não pode proteger-nos! Porque Deus deu-nos a nós esse poder. O poder de Deus tem de ser levado à prática no quotidiano daqueles que acreditam em Jesus e de todos aqueles que não tendo fé, acreditam no ser humano e no valor da solidariedade. E o distanciamento social faz parte do exercício desse poder. Por isso, quando cada um está a fazer alguma coisa para melhorar a situação, impedir o alastramento rápido da pandemia, e minimizar o sofrimento humano de tantas irmãs e irmãos nossos, aí está Deus a exercer o seu poder. E para muitos, a única coisa que podem e devem fazer é ficar em casa. Deus poderia ter livrado Jesus da cruz. Mas não o fez, porque em liberdade, os poderes instalados decidiram o contrário.
Quanto à Eucaristia, essa é celebrada hoje pelos profissionais de saúde que servem sem reservas o Cristo presente nos doentes que tem de atender e que para isso renunciam às suas próprias famílias para estarem onde devem estar, na linha da frente, de forma completamente altruísta! A Eucaristia é celebrada hoje nos milhares de voluntários e voluntárias que servem Cristo na pessoa dos sem-abrigo e das famílias carenciadas, cuja única esperança está na chegada de um cireneu que lhes ajude a sentir que não estão sozinhos. A Eucaristia está a ser celebrada naquelas famílias que deixaram de trabalhar e não têm nada para dar de comer aos seus filhos. A Eucaristia é celebrada na pessoa daqueles que generosamente saem dos seu próprio confinamento para levar algo que dê esperança a essas irmãs e irmãos. A Eucaristia é celebrada na pessoa daquele velhinho e velhinha que, sozinhos em suas casas não têm o carinho de ninguém, nem algo para comer nem dinheiro para comprar os medicamentos de que precisam. A Eucaristia é celebrada por tantos filhos e filhas impedidos de ver os seus pais velhinhos e doentes nos lares e em suas próprias casas, ou nos velhinhos que tanto queriam dar um beijo ou um abraço aos seus filhos e netos e não o podem fazer. A Eucaristia está a ser celebrada hoje na pessoa daquelas irmãs e irmãos nossos que morrem sozinhos sem o carinho dum ente querido e sem a possibilidade de ter um funeral digno.
São todos estes que experimentam no quotidianos das suas vidas o caminho de Jesus em direção à cruz. É a entrega desinteressada de tanta gente que deve alimentar a nossa esperança. Neste momento é esta a verdadeira Eucaristia.
Esta semana Santa, não vai terminar na Sexta-feira Santa; Ela termina no Domingo da Ressurreição. Vamos sair mais fortes porque mais solidários! Vamos contribuir para construir um mundo melhor, uma sociedade mais justa e mais fraterna, olhando ao essencial de vida, que é fazer com que as nossas relações sejam mais justas, mais fraternas, mais solidárias e mais humanas. Vamos ser sinais, uns para os outros, da presença de Deus. Assim, todos sentiremos que não estamos sozinhos porque Ele, através de cada um de nós, está presente.

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