“O Senhor deu-me a graça de falar como um discípulo, para que
saiba dizer uma palavra de alento aos que andam abatidos” (Is 50,
4). Estas são as palavras que dão início à primeira leitura
da missa de hoje, domingo da Paixão do Senhor. Ao celebrar a
Eucaristia hoje, sozinho como o momento impõe, estas palavras
ficaram a ecoar nos meus ouvidos e no meu coração; sim, hoje há
tanta gente abatida e sem alento para enfrentar este momento difícil
que todos vivemos. Mas é um momento de crescermos todos na
esperança.
Não é aquela esperança de que tudo vai ficar bem! Não. Não vai
ficar tudo bem. Vai morrer muita gente, vai haver muitas dificuldades
a todos os níveis da sociedade, já há e vai haver ainda mais fome
e muita gente sem as suas necessidades básicas satisfeitas. Já há
e vai haver muito sofrimento humano. Mesmo aqui à nossa porta. Mas é
aquela esperança que, embora confinados no pequeno espaço das
nossas casas, não nos paralisa, mas torna-nos mais atentos às
necessidades dos mais vulneráveis, enfim, nos torna mais solidários.
Na celebração do Domingo da Paixão do Senhor, tradicionalmente
chamado Domingo de Ramos, há dois elementos importantes que
ressaltam da liturgia e que refletem também o que aconteceu quando
Jesus entrou em Jerusalém. Há uma passagem da euforia ao desalento,
da exaltação de Jesus como o líder esperado ao abandono desse
mesmo Jesus por parte dos seus discípulos. Há a passagem de uma
manifestação de união motivada por uma fé entusiasta à mudança
de atitude e dispersão daqueles que eram os mais fiéis amigos de
Jesus.
A pandemia que nos aflige, veio fazer-nos refletir sobre a vida, a
sociedade, e a forma como nós vivemos as nossas relações. Ela não
poupa ninguém. Ninguém mesmo. A euforia do consumo e do bem estar
que a nossa sociedade nos impunha (parecia que estávamos todos no
topo do mundo!), deu lugar ao desalento, à falta de esperança, a
uma incerteza medonha. Mas como em todas as crises, são os mais
vulneráveis da sociedade que acabam por experimentar as piores
consequências.
Alguém tem de ter uma palavra de alento e de esperança! Não a
esperança daqueles que sentem a nostalgia de liturgias maravilhosas,
com multidões a caminhar pelas ruas de palmas nas mãos, que
infelizmente muitas vezes só fazem inchar o ego daqueles que as
realizam. É a esperança que vem da fé naquele Jesus que mandou
interromper a liturgia porque as relações entre vizinhos são mais
importantes (Mt 5, 23-24). A esperança que vem daquele Jesus que nos
ensina que, se for necessário, devemos interromper o nosso caminho
para a igreja (para a liturgia!) de forma a podermos estender a mão
a quem se encontra maltratado à beira do caminho (Lc 10, 29-37). É
a esperança que vem da oração silenciosa do nosso confinamento que
chega aos ouvidos do Pai (Mt 6, 6).
Neste tempo de dor e de sofrimento, de incerteza e até de desespero
para muita gente, há quem pense o contrário. Quando oiço um colega
padre dizer que o facto de não se celebrar a Eucaristia é sinal de
pouca fé, porque Deus “pode” proteger-nos do corona vírus,
mesmo se estivermos todos em contacto físico uns com os outros
dentro de uma igreja, fico triste. E apetece-me dizer: não, Deus não
pode proteger-nos! Porque Deus deu-nos a nós esse poder. O poder de
Deus tem de ser levado à prática no quotidiano daqueles que
acreditam em Jesus e de todos aqueles que não tendo fé, acreditam
no ser humano e no valor da solidariedade. E o distanciamento social
faz parte do exercício desse poder. Por isso, quando cada um está a
fazer alguma coisa para melhorar a situação, impedir o alastramento
rápido da pandemia, e minimizar o sofrimento humano de tantas irmãs
e irmãos nossos, aí está Deus a exercer o seu poder. E para
muitos, a única coisa que podem e devem fazer é ficar em casa. Deus
poderia ter livrado Jesus da cruz. Mas não o fez, porque em
liberdade, os poderes instalados decidiram o contrário.
Quanto à Eucaristia, essa é celebrada hoje pelos profissionais de
saúde que servem sem reservas o Cristo presente nos doentes que tem
de atender e que para isso renunciam às suas próprias famílias
para estarem onde devem estar, na linha da frente, de forma
completamente altruísta! A Eucaristia é celebrada hoje nos milhares
de voluntários e voluntárias que servem Cristo na pessoa dos
sem-abrigo e das famílias carenciadas, cuja única esperança está
na chegada de um cireneu que lhes ajude a sentir que não estão
sozinhos. A Eucaristia está a ser celebrada naquelas famílias que
deixaram de trabalhar e não têm nada para dar de comer aos seus
filhos. A Eucaristia é celebrada na pessoa daqueles que
generosamente saem dos seu próprio confinamento para levar algo que
dê esperança a essas irmãs e irmãos. A Eucaristia é celebrada na
pessoa daquele velhinho e velhinha que, sozinhos em suas casas não
têm o carinho de ninguém, nem algo para comer nem dinheiro para
comprar os medicamentos de que precisam. A Eucaristia é celebrada
por tantos filhos e filhas impedidos de ver os seus pais velhinhos e
doentes nos lares e em suas próprias casas, ou nos velhinhos que
tanto queriam dar um beijo ou um abraço aos seus filhos e netos e
não o podem fazer. A Eucaristia está a ser celebrada hoje na pessoa
daquelas irmãs e irmãos nossos que morrem sozinhos sem o carinho
dum ente querido e sem a possibilidade de ter um funeral digno.
São todos estes que experimentam no quotidianos das suas vidas o
caminho de Jesus em direção à cruz. É a entrega desinteressada de
tanta gente que deve alimentar a nossa esperança. Neste momento é
esta a verdadeira Eucaristia.
Esta semana Santa, não vai terminar na Sexta-feira Santa; Ela
termina no Domingo da Ressurreição. Vamos sair mais fortes porque
mais solidários! Vamos contribuir para construir um mundo melhor,
uma sociedade mais justa e mais fraterna, olhando ao essencial de
vida, que é fazer com que as nossas relações sejam mais justas,
mais fraternas, mais solidárias e mais humanas. Vamos ser sinais,
uns para os outros, da presença de Deus. Assim, todos sentiremos que
não estamos sozinhos porque Ele, através de cada um de nós, está
presente.
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